novembro 24, 2006

morreu o Alfredo


Chegou a hora. Tocamos à porta de casa que a nossa mãe abre prontamente. Beijamos-lhe a testa e dirijimo-nos imediatamente ao nosso antigo quarto. Na parede, descansa a nossa velha bicicleta e, algures por ali, arruma-se também o antigo projector. Mas o que realmente procuramos jaz em cima da secretária. Um embrulho vagamente arredondado em tons de castanho. Rasgamos infantilmente o papel e, abrindo a amolgada caixa de lata, descobrimos o que queremos: a antiga bobine. As luzes apagam-se agora, o velho projector volta a rodar incessantemente e as imagens surgem na parede. São pequenos cuts colados com hábil invisualidade, tudo o que sempre quisemos ver mas não nos foi permitido: descarados e prolongados beijos, cowboys (belos, altos e imortais como nunca deixarão de ser) tocando frágeis donzelas, mãos atrevidas, palpitantes lábios vermelhos, as belas curvas da praia (não as que o mar desenha). As imagens projectam-se a um ritmo cada vez mais lento. São manchas e cada um vê agora o que quer, tanto mais lento é o ritmo a que passam como maior é a vontade que tenho de me demorar demorar nelas - Jessica Lange toca os cabelos dourados, Marlene Dietrich olha-me demoradamente, Clark Gable e Vivian Leigh trocam o demorado beijo, Marylin Monroe deita-se em cima do piano, James Dean caminha sozinho pelas ruas de Nova Iorque, Churchill olha calmamente a Londres bombardeada. Já não é o censurado que desfila na parede, são os meus próprios mitos.
A fita acaba e o som do projector cessa prontamente. Enfim, cada um à sua maneira, todos fomos Tótós pelo menos uma vez na vida. Mas parece-me que este Alfredo era comum a todos.