julho 20, 2006

Uma Leica em pele de cobra

Do outro mundo

Crónica de Paulo Moura





Comprei-a numa feira em Moscovo. Um homem de ar aturdido aproximou-se. Trazia algo embrulhado num saco de plástico. "Very rare" disse apenas. Puxou-me para um canto e mostrou o que tinha para vender. Fiquei estarrecido. Era uma máquina Leica, antiga, a mais bela que alguma vez vira. Toda a placa superior e componentes mecânicas eram de metal dourado, talvez mesmo ouro maciço, o corpo da câmara forrado em pele de cobra.

"Cem dólares" disse o homem. Percebi que tinha pressa, estendi-lhe a nota e corri para o hotel para observar o meu novo tesouro. Era um modelo da Leica II. Na superfície dourada tinha gravado: Leica, Ernst Leitz, Wetzlar. E o símbolo do estado nazi: a cruz suástica encimada por uma águia. O pequeno objecto parecia contar a sua história: produto da prestigiada marca alemã fundada em 1869 por Ernst Leitz na cidade de Wetzlar, terá pertencido a um soldado alemão que viria a sucumbir nalguma batalha de ou bombardeamento da Segunda Guerra Mundial. Um soldado russo tê-la-á trazido e vendido em Moscovo.

Durante alguns anos, a Leica de ouro e pele de cobra esteve numa prateleira da minha sala, ao lado de outros objectos exóticos. Mas um dia não resisti e levei-a um avaliador, numa casa de máquinas fotográficas antigas. O especialista colocou um óculo próprio e pegou na câmara com muito cuidado. Pareceu-me que os seus dedos tremiam. Abriu-a, inspeccionou todos os mecanismos e por fim disse: "O senhor tem a noção de quanto vale esta máquina?"

Eu só tive noção de que gaguejei. "Deve valer bastante... uma vez que é antiga..." comecei a preparar-me para fazer o negócio da minha vida. "Esta máquina vale 100 mil contos...", disse o homem. Fez uma pausa interminável e acrescentou: "...se fosse verdadeira!"

Este modelo em pele de serpente existe", explicou, "mas a marca só fabricou um exemplar, por encomenda pessoal de Hitler. Por outro lado sabe-se que uma fábrica na Rússia produziu Leicas falsas a partir de câmaras Zorkis. Tudo indica tratar-se de uma dessas réplicas. "Embora tão perfeita, repare, que o meu parecer não é técnico, mas meramente estatístico", continou o perito, deixando escapar na minha direcção um fugaz olhar de terror, "...dada a extrema improbabilidade de a máquina de Hitler lhe ter vindo parar às mãos".

Não quis saber mais nada. Saí da loja. Qual Zorki, qual réplica russa! Eu levava no bolso a câmara de Hitler. Era óbvio. Acariciei a superfície rugosa e morna de pele de cobra e um turbilhão de ideias inundou o meu cérebro. Hitler usou este objecto. Em que circunstâncias? Para quê? Que imagens terá querido registar? Que momentos íntimos terá esta câmara captado? Que percurso terá percorrido até chegar a mim? E porquê eu? Não posso deixar de me sentir um privilegiado. De certa forma, é o próprio olhar de Hitler encerrado na pequena câmara escura. Espreitei pelo óculo. Incrível a limpidez da lente. Já não se fabricam assim.

É claro que depois a terrível relíquia voltou à prateleira da sala, para delírio das visitas. Mas às vezes olho-a e é como se o pequeno Graal maligno, o ovo da serpente hibernado mais de meio século, pedisse acção. Afinal está em perfeito estado de funcionamento. Porque não comprar-lhe um rolo e experimentá-la?



Crónica de Paulo Moura in Público, Domingo, 16 de Julho de 2006